"Maria de Lurdes Rodrigues "Estou cansada como muitos portugueses estão cansados. Não dramatizo"
28.11.2008
Para uns é corajosa e determinada. Para outros arrogante e inflexível. Tem mantido um braço-de-ferro com os sindicatos, mas admite voltar a sindicalizar-se. Para já, a ministra da Educação, que diz que se sente anarquista, tenta ter uma vida normal - ainda que tenha menos tempo para ir aos concertos da Gulbenkian e para fazer o jantar. (Por Andreia Sanches)
Cansada? "Estou cansada como há muitos outros portugueses que estão cansados. Não dramatizo." Arrependida de ter suspendido a vida académica para assumir o cargo de ministra da Educação? "Todas as pessoas têm momentos em que sentem que não têm forças, tudo isso é normal, uma pessoa acha que não vai conseguir e depois consegue, porque vê que tem recursos que às vezes nem imaginava que tinha. Quando fiz o doutoramento, houve tantas vezes em que me apeteceu arrumar os papéis e desistir!" Chegou alguma vez a pedir a demissão ao primeiro-ministro? "Não vou partilhar isso com ninguém."
Maria de Lurdes Rodrigues tem 52 anos, é socióloga, professora universitária, investigadora, independente (nunca se filiou no PS porque "não aconteceu"). E mais? "A vida de uma pessoa não se resume em duas páginas." Um perfil de alguém é sempre uma coisa simplista, continua. Não acha sequer que tenha interesse.
Uma amiga próxima descreve-a como "uma pessoa low profile", com "uma vida normal", que gosta de música, de cinema, de ler e de cozinhar e que separa a esfera privada da profissional. "Há pessoas com quem trabalho há anos e que ainda assim sabem pouco da minha vida", diz a ministra da Educação.
Admite que, apesar do esforço de manter as mesmas rotinas de sempre, algumas acabaram por alterar-se, nomeadamente no último ano, o mais conturbado do mandato. "Não vou ao cinema com a mesma frequência, faço menos vezes o jantar em casa, este ano não consegui comprar os bilhetes para a Gulbenkian", onde não costuma perder a temporada de música. Mas insiste: "Ter momentos da nossa carreira em que fica mais difícil fazer o jantar para os amigos também não me distingue em nada. Toda a gente tem."
Antes avisa: "Só falo da minha vida como ministra." Comece-se por aí.
Reunir no aeroporto
Por regra entra às nove da manhã no Ministério da Educação, na movimentada Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, e às nove da noite está em casa. Raramente faz noitadas de trabalho e, tanto quanto se lembra, houve apenas três ou quatro vezes em que foi necessário manter "as equipas a trabalhar pela noite fora". O que é preciso é que "quando se está a trabalhar se trabalhe mesmo".
Gosta de ir ao Parlamento. Diz que leva muito a sério essa função e que se prepara com cuidado. Lamenta que nem sempre os debates decorram de forma a que a opinião pública faça uma apreciação mais positiva da actividade política.
Recebe muitas cartas, não lê todas, tem uma equipa que faz a triagem. Mas já tem pegado no telefone para falar directamente com professores que lhe escrevem.
Quem com ela tem negociado nota que "não deixa transparecer muito os humores" - palavras de Albino Almeida, presidente da Confederação Nacional das Associações de Pais. O homem que foi em diversos momentos o único dos parceiros do ministério a defender publicamente Maria de Lurdes Rodrigues - "com ela, os pais apresentaram um conjunto de propostas que foram atendidas pela primeira vez em 30 anos, como a generalização das refeições no 1.º ciclo", sublinha Almeida - não consegue quantificar as horas de reunião que teve com ela, porque foram muitas. "Até no aeroporto nos reunimos para tratar de assuntos urgentes."
Mesmo nos momentos mais conturbados a ministra "não revela desânimo, nem euforia, diz sempre: 'Vamos ver!'"
Já a comunicação com os sindicatos está longe de ser tão pacífica. Um ano depois de o Governo ter tomado posse, o discurso da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) era bem revelador de uma relação tempestuosa (já tinha havido uma greve aos exames). Comunicado de Junho de 2006: "Os professores e educadores estão fartos dos descontrolados impulsos persecutórios da ministra da Educação e Portugal não suporta mais o seu olhar de medusa." Medusa é uma figura da mitologia grega com capacidade de transformar em pedra o que fixa com os olhos.
Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, diz que esta ministra se mostrou menos dialogante do que alguns dos seus antecessores; que por vezes é inflexível; e que se disponibilizou menos para encontros "destinados a discutir questões políticas".
"Provavelmente podia ter feito mais reuniões ou devia ter feito mais - é um balanço que não fiz ainda", admite Maria de Lurdes Rodrigues.
Nas escolas, o clima foi-se tornando mais tenso. A aprovação de um estatuto da carreira docente que criou duas categorias diferentes de professores e o novo modelo de avaliação do desempenho acabaram por resultar numa contestação inédita. O Presidente da República apelou à serenidade. No PS várias vozes criticaram Maria de Lurdes Rodrigues. Publicamente, a ministra mostrou-se, em diferentes situações, exasperada quando questionada pelos jornalistas.
Nos último oito meses, a professora universitária que até Março de 2005 era desconhecida do grande público assistiu às duas maiores manifestações de professores de que há memória. Na última, há menos de um mês, 120 mil dos 140 mil que dão aulas no país saíram à rua. "É má, é má, é má e continua", gritaram.
Nogueira diz que Lurdes Rodrigues "teve demasiadas afirmações infelizes" contra os professores. "Lembro-me de uma frase: 'Antes de um aluno ter abandonado a escola foi abandonado pelo professor.'" E os professores não a desculpam. Mesmo depois de ela ter ido ao Parlamento dizer: "Peço desculpa aos senhores professores por ter causado tanta desmotivação."
A ministra considera que muitas vezes o que aconteceu foi pior do que ser mal interpretada: "Houve um uso ilegítimo do que eu dizia... Pode ser culpa minha, admito. Os sindicatos e alguma imprensa tiveram alguma habilidade em rotular as medidas como sendo contra os professores. Por exemplo: [criar] as aulas de substituição é chamar faltosos aos professores."
Mas os críticos da ministra estão longe de estar apenas nas fileiras da oposição ou dos sindicatos. "Tenho uma longa relação de amizade e colaboração com a Maria de Lurdes Rodrigues e não queria estragar essa relação mais do que provavelmente já está", começa Manuel Villaverde Cabral, 68 anos, investigador, presidente do conselho directivo do Instituto de Ciências Sociais.
"Vai arrastar Sócrates "
Apesar das reservas, continua. "Não se pode ser 'autoritário' com os professores", fazer deles "o bode expiatório do insucesso escolar", ser "'liberal' com os alunos e completamente 'populista' com as chamadas famílias - que, de forma geral, não são capazes nem fazem qualquer esforço para apoiar os filhos no processo de aprendizagem -, quando toda a gente sabe que, em qualquer sociedade, os alunos só têm êxito quando os pais entram com a sua quota-parte de esforço!"
O sociólogo acha que o raciocínio político de Lurdes Rodrigues foi este: "O sistema educativo não funciona; a culpa é dos professores; o castigo será a avaliação!" Resultado: "A carreira dela como ministra não tem salvação. E, como o primeiro-ministro não pode demiti-la, sob pena de perder a face, é ela quem vai arrastar o engenheiro Sócrates para o 'inferno'." Villaverde Cabral, que falou ao P2 dois dias antes de o Governo anunciar que iria rever aspectos da avaliação do desempenho docente, faz questão de sublinhar que esta é a sua apreciação de "analista político".
"Eu?!" - é a resposta espontânea da ministra quando se lhe pergunta se vai arrastar o primeiro-ministro para o inferno.
Depois, recorda o que se passou nos últimos 30 anos ("Uma das marcas da política educativa tem sido a permeabilidade daquilo que é a instabilidade política ou eleitoral, muitos ministros, muitas hesitações, muito pára-arranca.")
Garante que tem o apoio de Sócrates e de todos os colegas do Conselho de Ministros a quem, ainda na semana passada, explicou ao longo de três horas o que se está a passar. Acrescenta que as eleições estão longe. "Estar neste momento a discutir votos não ajuda à resolução do problema."
E acaba com uma confissão: "Tenho que confessar que caí na mesma armadilha... Não sei se é uma armadilha, mas tive a mesma ambição que outros ministros da Educação tiveram que é fazer e fazer rápido. Temos os piores lugares nos rankings do abandono escolar, da qualificação dos adultos, da formação contínua. É uma situação sem paralelo e precisamos de introduzir mudanças de uma forma mais acelerada. Porque temos que apanhar o comboio do progresso. Há este sentido de urgência nos últimos 30 anos na Educação. Parecemos, por vezes, o coelho da Alice: 'Estou atrasado, estou atrasado.'"
Para António Dornelas, professor no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, instituição onde Lurdes Rodrigues trabalhava quando foi chamada para o Governo, a contestação "atingiu níveis inaceitáveis". Houve ovos - atirados por alunos contra o carro ministerial durante os protestos contra o regime de faltas - "e insultos", lembra. "Mas quem não se recorda dos rabos ao léu em frente a São Bento contra as políticas de Manuela Ferreira Leite?", ministra da Educação no segundo Governo de Cavaco Silva, continua o ex-secretário de Estado do Emprego, antigo aluno da governante.
Assim, "não é verdade que ela [Lurdes Rodrigues] atraia conflitualidade social; é corajosa, competente, rigorosa e comparável, na ambição reformista, a Veiga Simão", ministro de Marcelo Caetano.
"Ela é obsessiva, intransigente, arrogante", contrapõe Fernando Rosas, historiador, militante do BE. Das várias reuniões que teve com ela no mundo académico ficou com boa impressão. "Rigorosa e competente." Agora tem outra opinião. "O princípio da avaliação, por exemplo, é correcto. Mas a forma como o fez foi desastrosa. Não tem perfil político."
Workaholic? Também
"O que tem revelado são características que já tinha antes", afirma, por seu lado, Maria Eduarda Gonçalves, doutorada em Ciências Jurídicas, investigadora do ISCTE. "Muito organizada, muito persistente, muito convicta; já o era nos trabalhos científicos e nas negociações", quando Lurdes Rodrigues presidia ao Observatório das Ciências e das Tecnologias.
"A minha experiência pessoal com ela no mundo académico é a de que trabalha bem em equipa. Não diria que é autoritária - diria convicta, persistente, com uma personalidade muito forte. O que na minha opinião são indicadores de que tem personalidade para resistir até à última."
Tem mesmo?
A ministra diz simplesmente que tem um mandato de quatro anos para cumprir e não se alonga. "Fazem-se análises simplistas: 'Não tem condições, não pode!' Essa análise cabe em primeiro lugar ao senhor primeiro-ministro."
Quando tudo acabar, e regressar à academia, até "pode acontecer" voltar a sindicalizar-se. Porque a sua carreira é a de professora e investigadora. Uma carreira que, diz, começou não se recorda bem como. "Quando tinha 20 anos, achava que podia ser muitas coisas diferentes."
Terá sido mais tarde que decidiu que iria ensinar. Já depois de ter passado por Moçambique, onde trabalhou como cooperante, e de ter terminado o curso de Sociologia em 1984, um ano depois do nascimento da filha (de cujo pai acabaria por divorciar-se).
António Firmino da Costa, sociólogo, colega do ISCTE, diz que Lurdes Rodrigues "era uma professora e investigadora entusiasta e muito bem preparada". Workaholic? Também.
E antes disso? Sabe-se que fez o ensino primário no Colégio de Santa Clara da Casa Pia de Lisboa. Mas aí está um tema sobre o qual a ministra não fala. "Não respondo a perguntas sobre a minha vida privada ou sobre a minha infância."
Maria Alexandre Lousada, doutorada em Geografia, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, conheceu-a já como estudante universitária, depois do 25 de Abril. Encontraram-se na sede do jornal anarco-sindicalista A Batalha. "Achávamos que podíamos contribuir para um mundo melhor." Mas nenhuma achava que um dia ia ter um cargo político.
Também estiveram juntas na Ideia, uma revista anarquista, de cultura e pensamento libertário. "Planeávamos, escrevíamos artigos, levávamos à tipografia, depois íamos com uns molhinhos distribuir pelas livrarias, fazíamos tudo", recorda Lousada.
"Ainda me sinto anarquista"
Lurdes Rodrigues acede a falar desse período do anarquismo - começa por dizer que não fala do passado, mas esta fase faz parte das memórias que já tem abordado nas entrevistas. "Havia uma tarefa que me dava muita paz, que era colar selos e cintas nos jornais ou nas revistas que iam ser expedidos."
Passou muitos fins-de-semana à volta de uma mesa grande a dobrar e colar, dobrar e colar, dobrar e colar. "É uma coisa muito mecânica, não exige nenhum pensamento elaborado, basta ritmo, o que permite fazer aquilo e conversar, contar histórias. É uma actividade desqualificada que mobiliza imenso outros aspectos da relação com as pessoas e essas tardes de sábado ou de domingo a colar cintas no jornal A Batalha e selos na Ideia é um trabalho de que guardo muito boa memória."
Há outros trabalhos manuais que lhe agradam, conta uma amiga. Talhava os seus vestidos. E as bonecas das filhas das amigas têm roupa feita por ela.
Mais tarde, Lurdes Rodrigues trabalhou no Arquivo Histórico-Social, na organização de espólios de diversos militantes anarquistas doados à Biblioteca Nacional. E participou na organização da exposição sobre os 100 anos do anarquismo em Portugal. "Ainda me sinto anarquista." O que é que isso significa? "É ter um quadro de valores, de pensamento que orientam a nossa acção."
Dedicou-se especialmente à sociologia do trabalho, doutorou-se em 1996 e a tese foi publicada em livro (Os Engenheiros em Portugal). No ano seguinte, o ministro da Ciência Mariano Gago convidou-a para ser presidente do Observatório das Ciências e das Tecnologias. O seu trabalho foi muito elogiado. E depois de sair, em 2005, foi sendo chamada a participar em colóquios e debates, ao mesmo tempo que no ISCTE reformulava o curso de Sociologia do Trabalho.
"Ela é uma pessoa que olha para as políticas educativas como um problema que é antes de mais de resultados. Como é que a Educação pode resolver os problemas do país?" Dar resposta a isto "implicava alterar a forma como se olha para as relações laborais dos professores, para as sujeitar à obtenção de resultados", diz Dornelas.
A carta do menino
A contestação não acabou. Esta semana houve mais protestos na rua e há uma greve marcada. "Tem-se dito que não se fazem as reformas sem os profissionais, mas a história ensina-nos que não se fazem com." Pede-se à socióloga do trabalho que explique: "Não gosto de fazer comparações, mas lembro o que foi o processo de reforma da Saúde levado a cabo pela ministra Leonor Beleza. Hoje percebemos que uma parte das medidas foram essenciais para a qualidade do sistema de Saúde. Mas foram incompreendidas na altura pela classe médica."
Actualmente, identifica como ponto crítico "a estruturação vertical da carreira" - o facto de ter passado a haver professores e professores titulares (sendo estes últimos os que assumem os cargos de coordenação e de liderança). "Os professores consideram que todos são colegas e que não há diferenças. Mas há. Mais salário e mais experiência não correspondiam a mais responsabilidade. O que estamos a propor contraria isto. Precisamos que as escolas estruturem o seu trabalho em torno de princípios de maior responsabilização."
Na rua, é por vezes abordada - "umas vezes dão-lhe os parabéns, outras vezes vão dizer que não concordam", diz Maria Lousada. A amiga acha que, apesar do clima que se vive, as abordagens não são excessivas.
Lurdes Rodrigues garante estar aberta a discutir "se a avaliação se faz com esta ou aquela componente mais". Mas entende que "não há razão para suspender o processo". E os dias de tensão vão provavelmente continuar.
Garante, contudo, que também tem tido bons momentos. "Muitos." Pede-se-lhe que partilhe um. "Uma carta que recebi de um menino que recebeu um computador para ter em casa, não sei já em que circunstância, e escreveu-me a dizer: 'Quando for grande, vou inscrever-me no PS.' É tocante.""
Imagem do KAOS
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