Lamento desiludir-vos, mas não vou falar do assunto do dia. Neste preciso instante, dividimo-nos entre os que estão a cair de podres e os que estão a cair de férias. Uma qualidade, dada a nossa natureza profunda, que nem sequer impede a outra.
Pessoalmente, não vou para Praga, embora Praga seja uma cidade maravilhosa, filha de duas esquizofrenias: um tempo áureo, e barroco, e um tempo, crepuscular, que, aliás, partilha com Viena e Bruxelas.
Há um amigo meu que diz, e com imensíssima razão, que Franz Kafka, pertencente à segunda metade de Praga, caso tivesse vivido em Portugal, nunca teria tido tempo para escrever um só livro que fosse, dada a necessidade de tempo inteiro, para deslindar o seu quotidiano... kafkiano. Obviamente, isto é uma "boutade", já que a realidade é bem pior: da minha longa frequência daquela fabulosa História de Portugal, vermelha e conservadora, que o meu pai continua a ter nas suas longas estantes, há dois episódios de que me recordo, e que são, como Borges diria, um só: a imagem de D. Sebastião, à janela do Paço, a pegar-se de insultos com a arraia miúda, que, lá em baixo, no terreiro, atirava pedras uns aos outros, e uma outra, bem posterior, do magnânimo D. João V, o papador de freiras -- a família é para procriar... -- sentado, diante de uma janela, a ver a criançada, em baixo, a atirar pedras... uns aos outros.
Nunca passámos, nesta Mansão do Tédio, de atirar pedras uns aos outros.
Qualquer divertimento acima deste é demasiado subtil para o Genoma Português. Vasco Pulido Valente, em quem só admiro o brilho baço da escrita, geralmente encaracolada em redor de paradoxos, ou seja, fixada na forma, e desprezando quer o conteúdo, quer o leitor, enfim, o narcisismo, enquanto Língua, disse, algures, que nós não gostávamos de Liberdade, mas, sim, de Igualdade.
Já noutro lugar escrevi que a Igualdade Portuguesa é tentar pôr o vizinho do lado a ter tão pouco como nós, e Sócrates e a sua canalha exploraram isto até à exaustão, conduzindo o país ao presente estado de desestruturação social. Qualquer sistema, que ousasse separar o Puro do Impuro, mediante a aplicação de um sistema elementar, mas universal, de leis, seria, para o Português, uma pura violência, porque converteria o justiçado num primoroso acima do amnistiado pelo Tempo.
O Tempo, aliás, é fundamental no psiquismo jurídico português: houve uma era em que apanhar uma multa de trânsito desencadeava o pavloviano reflexo de a atirar para o fundo de uma gaveta, na expectativa de que viesse a amnistia do Natal, da visita da Irmã Lúcia, ou do aniversário da Elsa Raposo.
Uma das vítimas mais célebres da coisa, e isto passava-se nos píncaros da nossa Cultura, enfim, não nos píncaros, mas no topo de uma época morna, como ele próprio confessava, em que não havia grandes mitos que contemplássemos para cima, e falo de Cesariny, Cesariny frequentava um cinema porno em Paris, na época épica, em que os heterossexuais iam fazer o que outrora se fazia nos Banhos Romanos: "profiter" da escuridão, para que os acontecimentos se dessem. O cinema era exótico, e falo de uma Paris que nunca conheci, de há 50 anos atrás, cósmica e surreal, cheia de pequenos episódios do quotidiano... o cinema, dizia eu, tinha dois turnos, o de dia, em que eram as coisas entre homens que imperavam, e o da noite, em que, de quando em vez, as mulheres invadiam a plateia, para participar nesses pequenos satíricons, à la française.
A Escuridão é má conselheira, e embriaga-nos, pelo que, quando o Cesariny se sentou ao pé do garanhão, estava esquecido de que tinha mudado o turno, e tal como o Georges Michael foi apanhado, por um "infiltrado", a fazer uma mamada nos chichis da Califórnia, já 50 anos antes o Mário foi apanhado com a boca no trombone, porque, mal se apilcou ao instrumento, as luzes da sala acenderam-se e ouviu-se a voz "prendam-me este senhor!..."
Ser preso por estar a fazer um broche é uma coisa chata, em qualquer parte do Mundo, desde a nossa A5 até à Casa Branca, mas a verdade é que o Poeta lá seguiu para a sala de tribunal, onde, após a identificação, e se ter visto que era Português, os magistrados imediatamente tentaram ver-se livre dele, porque, para paneleiros, bem bastava a longa tradição francesa...
O Mário, coitado, não se apercebeu de que estava no Sistema Francês, de Raiz Napoleónica, e imbecil, como todos os neoclassicismos jurídicos, que acabam sempre por ser fundamentalismos morais, como o ferreira-leitismo, e acham que vêm introduzir alguma ordem na longuíssima tradição de excessos que é a Natureza Humana. Entre Napoleão, e a sua picha mole, estava uma batelada de leis, chatas e poeirentas, que teriam impedido o irmão do Rei, Duque de Orleães, de ser tratado, não por "Monsieur", mas por "Madame", ou o velho Abade de Choisy de escrever a fabulosa epígrafe das suas "Memórias", a frase mais libertária e espantosa, até Sade, que a mão humana já redigiu:"Cultivei a Natureza nas suas duas encarnações, a Feminina e a Masculina, mas sempre no registo dos seus extremos".
Pôs-se, então, a fazer o que fazia em Portugal, olhar para o relógio, à espera das 17.30 h., que era quando os tribunais tocavam a sineta da Função Pública, e as faces austeras se convertiam nos saloios pais de família, toda a gente se agitava, e era a hora de ir para casa, deixando tudo a meio. "Amanhã há mais", entre duas cervejolas e uma baforada de café.
Paris não funcionava assim, e, por mais argumentos que os advogados de defesa lhe dessem para que lhes tirasse o menino morto das mãos, o velho Cesariny, irreverente, teimoso, e escandaloso, nesses tempos, insistia em ficar calado, e dizer, "não tenho nada a alegar em minha defesa, só estava a chupar este senhor no cinema...", enquanto olhava para o relógio da sala, à espera das promissoras... 17.30 h.
Chegadas as 17.30 h., apanhou, em cima, com uma condenação napoleónica por actos contra a natureza praticados em lugar público, e uma inibição -- porque em França nunca houve... "disso" -- de pisar território sarkoziano durante umas eras.
Aqui, saltamos no tempo: já não é o poeta irreverente, que fora buscar Bréton no seu reduto, mas o homem consagrado, a quem a RTP ia dedicar um documentário, por acaso, orquestrado pela nossa amicíssima comum, Maria Elisa Domingues. Ao chegar à fronteira gaulesa, e ao passar o passaporte na base de dados, disse-lhe o guarda, aliás, disse à comitiva inteira, jornalistas, homens da câmara, convidados... "este senhor não pode entrar..."
Era o Ferreira-Leitismo Napoleónico, incrustrado de décadas, a manter incólume um obsoleto registo.
Abreviando a história, a coisa descambou em conflito, que teve de ser resolvido por via diplomática.
Desde então, a França evoluiu horrores, como diria a Betty Grafstein, e nós ficámos na mesma, aliás, estamos piores, porque já decorreram 50 anos sobre esse ansioso olhar para o relógio, à espera de que as 17.30 h. nos livrassem do pesado fardo da encenação da Justiça.
Hoje, mais uma vez, Portugal inteiro se pôs a olhar para o relógio, e, quando soaram as 17.30. todos pudémos soltar um suspiro de alívio e voltar às nossas pequenas e humilhadas vidinhas: felizmente que aquele caso, tão cheio de odores de cadáver, nunca existira. Real era apenas a plateia mundial, de olhos esbugalhados, a fitar 10 000 000 de ingénuos assobios para o ar...
( Pentágono místico, no "Arrebenta-Sol", em "A Sinistra Ministra", o "Democracia em Portugal", "KLANDESTINO" e "The Braganza Mothers" )
1 commentaires:
ehehehehehe, muito bom, lol!
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