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terça-feira, 19 de agosto de 2008

DA INVEJA III - NO REINO DOS TUGAS

"Como vimos, agimos quase sempre indirectamente. Sendo a inveja, já por si, um meio indirecto de influenciar, os seus mecanismos são, no nosso país, duplamente dissimulados, confundindo-se facilmente com um comportamento normalmente valorizado e aceite. Dificilmente se atribuirá, por exemplo, a demissão de tal ministro que estava a produzir obra, à inveja do primeiro-ministro que não suportava que lhe fizessem sombra — porque o ministro era mais mediático, mais brilhante, mais popular, etc. Considerar-se-ão outras razões mais elevadas — razões de Estado ou de Partido — e não se aludirá sequer às mesquinhas motivações da inveja. Mais precisamente, a generalidade da acção da inveja em Portugal é tão vasta que, tal como o medo, constitui um sistema. Não se trata, pois, de uma relação a dois (que pode também ocorrer e ser decisiva), mas de uma relação colectiva implicando, de cada vez, um número variável de indivíduos ou de grupos. Os efeitos do sistema das invejas não é visível: ora paralisante, ora desacelerador de uma dinâmica, ora descarrilador, provocando acidentes em catadupa, adiamentos sucessivos, etc. Como é que a inveja pode ganhar uma força tão grande que chega a entravar o trabalho de um grupo? Note-se, antes de mais, que a inveja implica uma relação de forças. Joga-se, na inveja, uma luta pelo poder de que sairá um dominante e um dominado. Por isso a inveja entra na categoria das «relações de influência». Com efeito, não basta considerar o que o sujeito vive quando se sente invejoso. A inveja, enquanto sentimento, tende imediatamente a agir sobre o invejado. Não é por acaso que «as invejas» pertencem ao vocabulário da bruxaria. Como sistema de práticas e representações que visam dar inteligibilidade a certos fenómenos de influência, a feitiçaria percebeu e interpretou relações subtilíssimas de que a acção da inveja faz parte (em particular o «mau-olhado»). É possível descodificar de modo racional este tipo de influência, alargando o campo da racionalidade com conceitos novos adequados aos mecanismos de captura, domínio e subjugação que a inveja supõe. «Pequenas percepções», «osmose», «devir-outro», «formas de forças» constituem alguns desses conceitos. Sem entrar na etnografia das invejas e dos seus efeitos, limitemo-nos a tentar elucidar o facto de uma inveja súbita poder ter consequências temíveis. Uma condição prévia deve existir para que a inveja seja eficaz: que a futura vítima se encontre em estado de receptividade inconsciente, quer dizer, de vulnerabilidade particular (o que a terminologia da feitiçaria portuguesa designa por «ter o corpo aberto»). Como se define esse estado de vulnerabilidade? Pela indeterminação da vontade e dos desejos do sujeito, pela hesitação mínima quanto às opções afectivas a tomar. Como se diz comummente, o indivíduo «não sabe o que quer», ou «não tem uma personalidade firme». Ou ainda: o seu poder sobre si é frágil, pouco definido; o seu poder de afirmação não se manifesta; a sua vontade de poder é débil, etc. Resumindo, é alguém facilmente influenciável. Ora, essa constitui a condição geral dos portugueses. Num tal terreno, é compreensível que a inveja prolifere: a fragilidade dos corpos, a debilidade dos espíritos apelam naturalmente para a acção das invejas. Digamos que um sujeito assim formado (melhor: «sempre por formar») compõe um sistema instável, ou metastável (cuja instabilidade produz movimento incessante definindo uma estabilidade na instabilidade permanente): a mais pequena impressão, o mais ínfimo estímulo provocam grandes mutações na organização geral do sistema. Um olhar de inveja, uma entoação de voz imperceptível, uma palavra anodina, uma pequena percepção qualquer que emane da inveja atravessa as finas defesas da vítima e vem imprimir-se no inconsciente do invejado. Às vezes basta que alguém manifeste em público satisfação, contentamento de si, uma ponta de orgulho (logo qualificada de arrogância) por qualquer coisa que tenha feito, para se tornar um alvo imediato de invejas. Mais: como o sabem bem os etnólogos que estudaram as invejas, estas podem desencadear-se independentemente da vontade e da consciência do invejoso. Eu posso «lançar» invejas sem que eu próprio dê por isso. Assim começa o processo de captura. Inveja-se uma pessoa porque ela ostenta algo (um dom, um bem, riqueza, beleza, coragem, inteligência, etc.) que falta ao sujeito e que este quereria possuir. «Lança-se» a inveja, e a acção da força que o olhar ou a palavra transporta imprime-se no espírito da vítima. Capta-o, submete-o. O invejado passou do estado livre ao de aprisionado: está doravante «sob influência»".

Gil, J. (2005). Portugal, Hoje - O medo de existir (2 ed.). Lisboa: Relógio D'Água, pp. 93-96

5 commentaires:

e-ko disse...

também li já algum tempo este livro e tendo vivido muitos anos longe daqui, mas lembrando-me bem de como a todos os níveis sociais o sistema insidioso da inveja que sempre minou o "progresso" deste país, ao voltar aqui, pude ver, com um olhar de diatanciamento de um quase etnólogo/sociólogo, como esta espécie de erva danina não só não tinha desaparecido como estava bem e recomendáva-se.

a inveja e o fatalismo são as piores pragas que têm impedido este país de saír da mediocridade... nem as pestes negras ou bobónicas foram tão prejudiciais que ficaram circunscritas no tempo, ao passo que a fatalidade e a inveja, que de que conheço a existência desde que existo há algumas décadas, mas que devem ter raíz na noite dos tempos e que se transmite como uma herança genética e cultural, a cepa torta!

e-ko disse...

também a hipocrisia tem sido o terreno fértil de todas estas misérias tão humanas e tão tugas!

metatheorique disse...

Olá E-ko,
Bom, então se tem a experiência vivida de poder comparar o estrangeiro com o tuga está ainda em melhores condições de poder meditar sobre esta triste realidade. Só muito tarde me apercebi dos efeitos nefastos da coisa. O Gil toca no ponto essencial: transmite-se por pequenas percepções no dia-a-dia entre pessoas. Ele vai mais longe e apela à perspectiva analítica de Abraham & Torok sobre a transmissão psíquica intergeracional. Mas não desenvolve, até porque não é fácil. Seria preciso considerar a estrutura familiar portuguesa, os traços paranóides sob o olhar do outro acicatados pelo medo pidesco que o Estado Novo impôs ao «viver habitualmente» salazarista e outros factores como por exemplo os conflitos entre irmãos que têm uma importância sintomática no viver da família. Se consultar a história social portuguesa e mesmo as tradições orais vai ver que há muita desgraça familiar (inclusive assassinatos entre familiares) escondidos na bruma dos tempos deste país, tudo mitigado por uma pobreza e ignorância extremas levadas a cabo intencionalmente pelo Estado Novo em prol de elites que agora representam boa parte das profissões liberais, estrutura superior do funcionalismo público e altos cargos do Estado.
abraço

katrina a gotika disse...

Mais uma vez, Metatheorique, os meus agradecimentos por dar a conhecer passagens deste livro, desta vez pela negativa. Assim percebo que não perdi nada a lê-lo e não vale a pena fazê-lo. Só diz lugares comuns e ainda por cima todos mal explicados, fora do alvo, como alguém que fala de um país sem lá ter vivido. Como eu falo, por exemplo, da América. Só que eu tenho consciência de que só devo estar a dizer parvoíces e muitas vezes falo assim aos americanos para os provocar, para ver a reacção, para testar a minha própria ignorância.
Mas agradeço porque se deve agradecer sempre que alguém nos ajuda a riscar um livro da lista (quando há tantos para ler). Gosto destes pedacinhos. Continue, por favor.

e-ko disse...

Gótika,

não me parece justo dizer que o Gil, por não ter vivido por aqui de forma contínua uma parte da sua vida, não sabe nem percebe o que por cá se passa. por vezes é necessário uma distância forçada ou voluntária para que comportamentos e práticas em que nós próprios estamos envolvidos e que nem conseguimos ver como tóxicos, para que nos comecem a parecer estranhos.

também eu vivi muitos anos longe daqui, mas tinha visto o suficiente nos "pequeninos" meios intelectuais, e na minha própria família, que se estende por todas as classes sociais, com uma traçabilidade genealógica sobre um certo número de gerações...

não é a mesma coisa lançar-se em pequenas provocações contra os cidadãos dum país que não se conhece o suficiente para que não se saia dos clichés habituais. ter vivido a infância e adolescência integrado no sistema social e familiar duma nação permite bem conhecer como as mentes se estruturam no interior dos grupos e a distância torna-se numa espécie de lupa.

não penso que o medo de existir ainda seja determinante, mas uma espécie de vazio do medo... como uma parede "real" que foi pulverizada, mas que marca ainda o espaço imaginário que mantém as mesmas estruturas psicológicas e sociais. e não são só os mais ignorantes que o perpetuam.

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