"É neste contexto de forças que se deve situar a inveja. Forças poderosas de ressentimento resultantes do esmagamento das forças de vida e da sua transformação em forças de morte. Com uma semi-reviravolta: não se voltaram inteiramente contra si mesmo, encolheram, comprimiram-se, adaptaram-se à escala da humilhação — e puseram-se a circular enclausuradas, sob as formas várias do ressentimento, da abjecção, da inveja.
Formou-se deste modo uma sociedade paradoxal, em que um dos aspectos importantes dos laços de sociabilidade consistia em recusar esse mesmo aspecto da relação política. Em guerra espiritual e verbal contra o país, os indivíduos juntavam-se como cidadãos para conspurcar e amaldiçoar o país. E assim mantinham a comunidade nacional cada vez mais coesa. Tubo de escape perverso que dava a volta para se conectar de novo com o motor, alimentando--o com os seus gases venenosos. (Complementar, inverso e simétrico deste, um outro fenómeno se desenvolveu ao mesmo tempo, nas camadas cultas da população: a crença na genialidade pessoal, com as mais diversas expressões megalómanas. O número de artistas, escritores, pintores, estudantes, intelectuais que se julgavam génios durante o salazarismo era incontável. Fenómeno de compensação imaginária, habitual em todas as ditaduras, ao que parece: nos países de Leste, recentemente libertados, os génios imaginários pululam, como ainda hoje em Portugal.)
Situar a inveja neste contexto significa considerá-la dentro de um meio em que todas essas forças (de ressaibiamento, de queixume, de ódio) se contaminaram umas às outras. É dentro de um banho de ressentimento que melhor se desenvolve a inveja. É no queixume implícito de se achar a si mesmo pequeno que se inveja alguém que pretende ser maior. Na «democracia afectiva» do salazarismo, o nivelamento fazia-se sempre por baixo: o sentimentalismo definia o ser humano reduzido, pequeno, infantilizado. Compreende-se assim que o 25 de Abril tenha aberto uma panela de pressão de invejas e ressentimentos subitamente prontos a cultivar-se e aplicar-se sem entraves. O salto brusco do estatuto social, sem passar pelas etapas intermédias habituais, que as revoluções ou mudanças profundas de regime político permitem, ia lançar toda uma série de gente na corrida aos postos superiores, aos «tachos», aos privilégios de toda a ordem; e, atrás dela, como flechas certeiras, seguiam milhares de invejas".
Gil, J. (2005). Portugal, Hoje - O medo de existir (2 ed.). Lisboa: Relógio D'Água, pp. 92-93
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