A TVE, hoje, estava a cumprir magistralmente o seu serviço de televisão pública. Uma enorme fluência, em redor de um grande mito, Montserrat Caballé. Como nos ares andam os piores augúrios, pensei logo, "querem ver que a mulher morreu...", mas nem sequer tinha nascido, nem era aniversário, era só porque... sim, o que revela uma Cultura viva, que bem se passaria sem quaisquer ministérios homónimos, ao contrário de cá, que necessitamos de muletas burocráticas, para sustentar caríssimos emplastros vivos.
Numa certa geração, a Caballé tem um timbre inimitável, uma figura única, e uma presença em palco que dificilmente se repetirão. O rigor do ataque da nota, doa a quem doer, não passa, pela oscilação de 1/4, ou 1/8, de tom que muitas vezes afetavam os agudos das suas vizinhas próximas, e só me vêm à cabeça dois outros grandes nomes, a Callas e a Sutherland. A Callas era trágica, e mostrou-se mais do que grandiosa, como só Pasolini a soube ver, na "Medea", onde, já ferida nos dotes, a colocou num papel mudo, só interrompido, já com muita película corrida, se bem me lembro, em que a feiticeira louca, se lança, a meio do filme, em redor de um paúl, gritando, "onde está o centro, onde está o centro, este é um local maldito, porque não tem Centro!..."
A coisa não é bem assim, mas pouco importa, para o decurso do discurso.
Pelo seu lado, a Sutherland funcionava como uma máquina de guerra, a voz "bulldozer", que adorava o "bel canto" apassarinhado, daquelas figuras entre o "kitsch" e o patético, de Donizetti, mas que se segurava, muitas vezes, lá em cima, com umas estranhas molas de pendurar roupa, que só deus sabe como não se desfazia toda... Para o fim, já com a revolução da Música Antiga, Hogwood põe-na, na "Athalie", de Haendel, a fazer uma aparição extemporânea e inesquecível, trémula e pálida, como um fantasma de um outro tempo e um outro paradigma, a mostrar que o génio e o dote vocal, quando grandiosos, sobrevivem, mesmo à usura do Tempo e à rotura de paradigmas.
A Caballé era histriónica.
Foi fantástico poder ouvi-la nos momentos mais altos da Voz Soprano, e nas árias alicerces da cúpula da Música, e vão assim as de que me lembro, a ária da "Turandot", a "Casta Diva", da "Norma" e a terrível e longa intervenção final da "Salomé", já com a cabeça de João Batista na mão. Ela traçava a coisa rigorosamente, e nada se lhe assemelhava. Acho que, no meio da infindável pilha de coisas que por aí tenho, estão essas históricas gravações todas, o que me serena infinitamente.
A TVE não parava: vinha, depois, o cruzamento do célebre híbrido, no ato inaugural das Olimpíadas de Barcelona, a Caballé, totalmente hipopotâmica, com a grandeza em que o original já se confundia com a qualquer sua própria caricaturização, e o Mercury, já em fim de vida e carreira, mas realmente platinado. Este diálogo nunca aconteceu, mas é importante para o texto: no fim, Mercury volta-se para a Diva, e diz-lhe, "como eu adorava ter o formidável poder da sua voz...", e ela, uma senhora, aliás, duas, respondia-lhe, "e eu, Fred, como adoraria ter uma garganta de quilómetros de picha, como a sua..."
Isto é História e é destes momentos íntimos de confissão que o Grande Romance do Mundo se constrói.
No final do jantar, só me apetecia reapreciar os tais momentos, e voltar a ouvir a "Norma", como dizia o narrador, cantada ao vivo, com o Mistral, ou o Suão, ou o Sirocco, ou lá o que era, a soprar fortemente, os véus a flutuarem, e, quando se julgava impossível que o espetáculo prosseguisse, a Caballé decidia afrontar os elementos e criar um mágico momento, de comunhão de misticismo entre a Lua, o Feminino, o Vento e todas as minúcias de técnica acumulada, que fazem do papel, usando uma metáfora, uma necessidade de uma voz "maciça e cúbica". (Quem não percebeu, volte a ler) Isso faz parte da "Norma", na qual a Callas se tornou um paradigma, mas esta incarnava, porque, em certos papéis do Grande Canto, não chega o aparelho vocal, mas a densidade da personalidade, a existência de um "caráter", um carisma esculpido, muito mais do lado da escultura do que da decoração, e uma mulher que cantava, contra os ventos enlouquecedores, uma das mais difíceis árias do Bel Canto arriscava-se a criar um momento único, e "que los ha, los ha", e, já que estamos numa de revivalismos, só me vem à cabeça um outro momento, este instrumental, gravado ao vivo, de Gilels, outro gigante, a tocar uma transcrição de Bach-Busoni, BWV 532, em que, com a pedaleira carregada a fundo, o saudoso Emil começava por criar uma formidável barreira sonora, que, seguidamente, abafava com a pedaleira, e, num efeito, que, duvido, alguém consiga hoje repetir -- nem Pletnev --, fazia com que o jato das cordas percutidas parecesse estar a chover em forma de neve, e, numa cortina de harmónicos, a filigranar-se cada vez mais, e criasse, em dez ou menos segundos, a ilusão de que estávamos realmente a ouvir o velho órgão original, de Bach, e não o piano de Busoni. Essas coisas acontecem uma vez na vida e não se repetem, mas, graças à Técnica, entram no domínio da dádiva, e ficam-nos acessíveis até à Eternidade, nos fundos das prateleiras do nosso Museu Imaginário.
Não só pela rima, Eternidade rima com Realidade, e, ao "zappar" para o canal seguinte, desfilava uma série de caras exaltadas. Parece que o demente que assume o cargo de Primeiro-Ministro de Portugal tinha estado, mais uma vez, a tentar ser branqueado na Sic-Portugal, dos interesses do Senhor Balsemão, que, até nós começarmos a falar livremente, nestes espaços virtuais, e a dizer tudo o o que pensamos, mexia, ano atrás de ano, década atrás de década, o fingimento do que deveríamos tomar por realidade.
De um lado, o hemi-monhé, em pré-campanha eleitoral, com a melanina a dar-lhe um perpétuo tom muito Bombaim. Do outro, uma alma negra, não de melanina, mas de todo o torpe que um caráter pode reunir numa só figura, como nem Shakespeare ou Dostoievsky conseguiriam, por mais que tentassem, e eram infatigáveis.
Felizmente não assisti.
(Duo em "Arrebenta-Sol" e "The Braganza Mothers")
1 commentaires:
POrque falar dum "cantor pífio" no mesmo texto onde pontua a Montserrat Caballé e o F. M.? Com todos os seus defeitos, e são (eram muitos) cantam infinitamente melhor do que o sinhor inginheiro!...
Cumps
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