"Um dos exemplos cuja acção difusa e insinuante pode comprometer o trabalho de um grupo ou mesmo a marcha geral de zonas inteiras do trabalho social é a inveja.
Não sendo característica especialmente portuguesa, mas encontrando-se em todo o tipo de sociedade, tem em Portugal um terreno de eleição. Por várias razões: porque o nosso país continua a ser, em muitos domínios, uma sociedade fechada; porque, enquanto tal, o elemento pessoal e humano ainda pesa mais do que a estrutura impessoal, sendo assim, os efeitos da inveja só indirectamente, através das pessoas, atingem a instituição e, portanto, raramente se descobre a relação entre a causa e a consequência; porque uma sociedade em que tudo se faz para encobrir os conflitos, não combatendo frontalmente o adversário, convém particularmente bem ao trabalho da inveja; porque um dos laços mais fortes da sociabilidade política (que substitui, em parte, o laço de cidadania, muito fraco) é o queixume — cuja relação com a inveja é das mais estreitas; enfim, uma última razão parece decisiva para dar às invejas um lugar privilegiado na sociedade portuguesa actual: o facto de esta sair de um regime de desvalorização, humilhação e mutilação das forças de vida do indivíduo. Na escala do «pequeno homem», impedidas de se desenvolver e expandir, essas forças voltaram-se contra si próprias. De um modo muito específico: não directamente contra o sujeito (o que poderia suscitar reflexos suicidários), mas contra o «outro» (com um «o» pequeno), já que o «Outro» (O Estado Novo, Salazar) era, por definição, intocável e quase sagrado.
Quem era o «outro»? Uma instância indefinida que designava todos os outros indivíduos da colectividade em geral e nenhum em particular; mas que podia subitamente encarnar-se em tal ou tal pessoa concreta. O «outro», afinal, eram todos, era o país.
Assim cresceu, de maneira desmesurada, um sentimento complexo, misto de ódio, ressentimento, desprezo, asco, indignação resignada contra «o país». Sentimento tão espalhado que quase se pôde considerar, durante um tempo, como um traço da identidade lusitana.
O ressentimento e o ódio alimentavam o queixume, num discurso recorrente até à exaustão: «este país é uma merda», «está entregue aos bichos», etc. E, de cada vez, o sujeito da enunciação excluía-se do conjunto nomeado, como se lhe não pertencesse. Era uma maneira (um gesto linguístico mágico) de se separar, de se diferenciar de todo aquele mal detestado em que se encontrava mergulhado. Por outro
lado, nomeava-se assim o inominável: o mal, a doença metastásica que atacara o país".
(Gil, J. (2005). Portugal, Hoje - O medo de existir (2 ed.). Lisboa: Relógio D'Água, pp. 91-92)
0 commentaires:
Enviar um comentário