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sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Longuíssimo mergulhar na Noite




É nas paletas dos crepúsculos que encontramos toda a diversidade dos abismos humanos. A memória tende para apagar os rastos do inconcebível, e sentamo-nos nas esplanadas do final do nosso tempo com a sensação de verões intermináveis, brisas de primaveras estilizadas, mas, desde logo, os rastos das escritas, essa terrível grafia das sensações perdidas, remete-nos, pelo inesperado, para o duro choque da Realidade.


Em 2001, o ano aziago em que um dos meus mundos acabou, relembro a queda das Torres Gémas, orgulho da Engenharia e do Gosto do Excesso, que marcara todo um período de euforia. Não falarei sobre a teia que envolve o tema, porque o que me leva a relembrar aqui são os pormenores, e já o fiz, num daqueles textos perdidos nos nossos enormes arquivos de linhas: a imagem ficou-me, uma poeira mortal, que se estendia até ao solo, um relator, que caminhava, arfando, e soltando umas leves interjeições e pormenores de referência do sucedido, e umas quantas sombras, ao seu lado, a tossirem, e, de súbito, o gesto de solidariedade, a voz da reportagem que se volta para um dos seus vizinhos ofegantes, e lhe, pergunta, por momentos, "se quer respirar", estendendo-lhe, solidaria e cortesmente, a máscara.


Esta é (era) uma América da apoteose da Civilização e do trato humano, e não precisaria de mais linha nenhuma para poder exprimir um infinito orgulho por uma Cultura, plural, assimétrica, mas onde podíamos encontrar os momentos que marcaram aquilo que, definitivamente, define a Humanidade.


No extremo de tudo isto, as imagens dos últimos dias, foco de horror em Port-au-Prince, capital de um Estado Pária, a República dos Escravos, sustentada e tolerada naquele mosaico de equívocos pós coloniais, que são as Índias Ocidentais, suportada pela Comunidade Internacional, pelo mero pretexto e pelas meras convenções de que uma linha marcada num mapa é suficiente para definir um "Estado", com todas as suas sequências e consequências, território de guerra, de miséria absoluta, de tráfico e prostituição das almas, de leilão permanente do ser humano, superpovoada, desflorestada, economica, cultural e turisticamente inviável, a terra dos Negros das Caraíbas tinha, para mim, apesar de tudo, um supremo valor estético, o do fonema do seu nome clássico, "Hispaniola", o mais belo nome das velhas designações das Antilhas.


O que o Sismo trouxe foi uma metáfora e uma alegoria dos Fins dos Tempos, uma terra onde uma calamidade, subitamente, dissolveu, para sempre, as mais elementares regras de convívio humano, e onde os espetáculos próximos anunciam ainda todos os patamares dos infernos descritos pelos homens da Grande Escrita, pelos Pintores da Imagem do Horror, e pelos sinistros Profetas do Apocalipse.


Contrariamente ao crepúsculo das Torres, o que vemos, hora após hora, são rostos debruçados sobre o seu próprio caso, deambulando, apartados da história do vizinho, gente em excesso, que, metaforicamente, pareceu incarnar agora, à pressa, um mal universal, o de nos termos tornado na pior forma de poluição da Ecosfera, e de não sermos capazes de ter tratado esse mal pelo seu próprio nome, pelas velhas causas e tabus, as dos sinistros monoteísmos autoritários que continuam a enformar as sociedades, desorientadas de Ocidente e Oriente: a grande doença da Terra é o Homem, e tão só o Homem, a espécie mais inútil, desde a Criação, Mítica, ou Natural, que o Mundo conheceu.


O que nos aguarda agora, com toda a angústia que isso me provoca, é um prenúncio de necrofilia, de canibalismo, de impiedade, de um Mundo sem regras, entregue ao seu Inferno autista, com a dissolução de todos os elos de lei e solidariedade, e que poderá prenunciar que uma comunidade humana, com todos os azares da Terra imprevistamente reunidos, das mais pobres do Mundo, possa, alegoricamente, neste início do séc. XXI, representar a epígrafe do Universo sem controlo, nem equidade, para o qual temos estamos, progressivamente, a construir e a caminhar.


No Haiti, entre a pobreza e o horror da calamidade, assistimos hoje a um acelerar da desagregação dos valores imediatos e possíveis, o fim do "outro" e o emergir do homem-monstro, para quem a sobrevivência mínima se rege por um salve-se-quem-puder ditado pela cegueira gratuita.
As notícias falam de um deserto de poeira e destroços, onde as regras serenadoras da Cultura da Solidariedade Mundial ainda parecem não ter acesso, e até terem, se chegarem a ter, reinará o pior monstro que reina dentro de nós.
Hoje, esse monstro chama-se Haiti, mas faz-nos lembrar um tempo, muito mais vasto, em que sempre se chamou "Homem", entregue à urgência da sobrevivência e à impiedade do que de mais lúgubre transporta, como fardo e fado, no mais fundo âmago de si, mais animal do que Humanidade.


( Duo de trevas, no "Arrebenta-SOL" e em "The Braganza Mothers" )

1 commentaires:

m.a.g. disse...

Dos mais belos e emotivos textos que li de si.
Tudo o que tem acontecido a este povo desde a sua origem até aos dias de hoje, designo eufemisticamente como filhos de um Deus Cruel.
Uma tragédia de contemplação insuportável!

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