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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A "Adolfa" de outros tempos


Neste blogue praticam-se a Liberdade e o Direito de Expressão próprios das Sociedades Avançadas
Uma das personagens do já longínquo imaginário da Época das Luzes do bichedo lisboeta, era uma autêntica avant-garde anterior ao avant-garde e que dava pelo nome de "Adolfa"(1).
Mesmo antes de ter começado a deambular pelas noites de sexta-feira, em que tínhamos de chegar à Emília (2) por volta das dez da noite (tal era a turba à porta), já eu conhecia de vista a dita Adolfa. Mulatinha de Moçambique, vestia-se de uma forma muito estranha para um ano de 1979, onde se os betos já trajavam tal e qual como os CDS/PP de hoje (calça de fazenda cinza ou jeans, camisa branca com riscas, pull-over azul marinho ou bordeaux, mocassins, etc), o resto da cangalha andava como sempre. Uns de calça vincada e outros de Rica Lewis, Loys ou falsíssimas Lavi's da feira da Ladra, não esquecendo os conjuntos de bombazina da Mustang, por exemplo.
A Adolfa era especial. Calças tufadas e metidas dentro de botas pontiagudas, camisolas de gola alta de lamé às riscas, um casaco apertado na cintura e de ombros exageradamente armados, bandas largas e claro está, a inevitável estola de quinquagésima mão, comprada na até há pouco ainda existente Mme. Campos (Largo da Trindade), onde um bicho qualquer mordia o próprio rabo peludo, enroscando-se à volta do comprido pescoço de garça da crioula. Uma pochette ou mala de indefinível sexo, fazia o conjunto, a que o chapéuzinho de feltro anos 30, emplumado ao estilo da Dietrich, dava o toque final. Claro que na altura, toda a gente olhava e via-a passar, sem nada dizer. Era uma figura típica que calcorreava o Chiado e tomava uns chás na Imperium, fabuloso café/salão de chá, outrora existente nas escadinhas do Elevador de Sta. Justa, onde hoje existe uma terceiro mundista pastelaria de alumínios, azulejos tipo-WC e lataria anexa. Era a ainda existente Lisboa dos passados anos 40, que à bicharada servia chá em serviços de Cristoffle e cujas paredes se encontravam cobertas com pinturas murais salazaristas, evocadoras de descobrimentos, ou de guerreiros que há muito se foram. As janelas eram debruadas com pesados cortinados de veludo cor de vinho e o pessoal muito bem composto por senhores de respeitável idade e de aristocráticos cabelos prateados, impecáveis em uniformes que hoje os fariam passar por diplomatas das Necessidades de outrora. Nas mesas e além daquelas ocupadas pela bicharada, lá estavam todos os dias as senhoras de cabelo violeta, colares de pérolas, uma ou outra com pequenos véus transparentes e mosqueados, boquilhas de prata, chapéu com penas, malas pretas e luvas a condizer. Nada de putedo de perna ao léu ao estilo da linha actual regime RTP/SIC/TVI/Caras/Flash. Outros tempos em que a tipologia do Cinhismo ajardinado, se passeava então no Cais Sodré e ruas próximas! E isto até meados dos anos oitenta. O que deitámos fora, por culpa da canalha yupee que o Cavaquistão pariu...
Pois bem, a Adolfa era uma vital parte do visual lisboeta e sinceramente, nunca soube o que fazia da vida. Estava em todo o lado, fosse na Baixa, no Príncipe Real ou para os lados do Saldanha.Rebolava-se por aqui e por ali e isso já era um programa planeado para umas décadas. Conhecia-a de vista, era tudo.
Quando comecei a sair, é claro que esbarrei logo com essa estrela nos sítios do costume e embora jamais tivéssemos falado, existiam conhecimentos comuns e impossíveis de contornar num meio ainda razoavelmente restrito. Uma tarde, fui com um colega da faculdade a casa de "uma amiga" que vivia para a zona da linha de comboio da Av. de Roma. O apartamento era confortável, bastante burguês pré-25 de Abril, mas já perfeitamente adaptado às necessidades político-sociais do momento. Os papás do João tinham virado "comunistas ferrenhos" e sobre as consolas douradas do hall e da sala, lá estava todo o oportuno lixo comprado nas bancas do PC no Rossio: medalhas do Lenine contracenando com bailarinas de porcelana de Meissen, bandeirolas com a foice e martelo mesmo ao lado de patos em cristal Murano, autocolantes aqui e ali, fotos do Cunhal e até um busto de uma sopeira qualquer, uma tal Catarina Eufémia, famosa entre as regateiras da época. Sobre a mesa de apoio ao salão, o Avante!, o Diário de Lisboa, uma ou outra ilegível revista russa e a inevitável cigarreira de prata "do avô", para servir os camaradas de tertúlia progressista. Era a época em que sobre os braços dos cadeirões forrados de veludo verde seco, pontificavam aquela espécie de cinturões em cabedal castanho, aos quais se atarraxavam cinzeiros dourados, muitas das vezes ostentando inexistentes brasões, etc. Franjas nas almofadas, uma natureza morta sobre side-board, um Cargaleirozeco, enfim, o costume naquela área da cidade. Dentro do gira-discos/rádio de madeira envernizada, lá estavam as agora bem convenientemente escondidas Amália, Madalena Iglésias, AntónioCalvário, Artur Garcia e um sem número de vencedoras da Eurovisão dos anos transactos. Bem à frente e em destaque, os chatarrões do momento, entre os quais sobressaíam o Sérgio Godinho, a ranhosa vózita do Zéquinha Afonso, o Correia de Oliveira, o José Mário Branco e outros besuntas que tais. Para a jóia decorativa da casa, o moderninho disco-dancer João, os super-êxitos da Glória Gaynor, Sylvester, Gabriela Schaaf, Dire Straits, On 3 Degrees e claro está, a grandiosa Amanda Lear e a já ostensivamente fufona nazi da Zarah Leander. Fiquei de boca aberta, tal a mundivisão oportunista que aquele re-neo-neo-realista apartamento mostrava. O tal João, decidiu-se por fim, a mostrar-nos os tesourinhos mais queridos do vasto rol de recordações da sua ainda tenra juventude. Consistiam numa infinidade de pequenos filmes caseiros filmados em Super-8 e nos quais surgiam alguns dos seus amigos de noite em cenas mais ou menos imaginativas e bem esgalhadas, autênticos happenings que não desmereceriam um Salvador Dali dos anos 30. Num deles, aparecia a Adolfa toda nua e após um sem número de peripécias dançantes, decidia-se a servir de candelabro, onde o seu terminal digestivo se tornava no receptáculo de uma enorme vela branca que depois de acesa, dava um pouco de luz a um ambiente onde os amigos se contorciam em ritmos exóticos e mais ou menos au ralenti Mata-Hari, devido à profusão de drunfos tomados. Agachada e de rabo para o ar, lá iluminava com o círio, os benévolos espíritos presentes. Lá estava também o Bino (3), um fulano absolutamente excêntrico, de olhos de carneiro mal-morto, voz rouca, sempre vestido de preto e bastante inteligente. A sua vida consistia numa ininterrupta série de fodas com rapazes quéques e estava sempre num sistema de falência psíquica-técnica, completamente drunfado das 8 da manhã às sete do dia seguinte. Após uma longa carreira de professor algures no Alentejo mais rural, decidiu-se a um renascimento espiritual, passando para uma confraria de hare-krishnas ali para a zona da Estefânia, onde não faltavam rapazes bonitos, de cabeça rapada e sempre vestidos com o conveniente balandrau cor de salmão. Não se comia carne de galinha, porco ou vaca, mas chouriço humano não faltava no retiro espiritual. Isso e inebriantes fumos que abriam caminhos para tudo e mais alguma coisa.
Outros nomes dessa época despreocupada em que se fodia em tudo o que era escada lisboeta, surgiam em mais uns tantos Super-8. Um dos que jamais esqueci, era um rapaz simpático e alto, benzoca e que invariavelmente mostrava nos filmes o inútil apêndice reprodutor, de exageradas dimensões e que para mais nada servia senão para evacuador de fluídos da bexiga. Um belo dia, já nos anos 80, decidiu-se ir a Marrocos, à demanda do corte do dito cujo e lá bem do alto dos seus quase 1,90m, tornou-se numa conceituada médica de profissão. Passou a ter aquele look um tanto ou quanto meio gasto das spinster da Avenida de Roma, com as meias de vidro, saias aos quadrados plissadas, e cabelo escorrido. Uma autêntica gaja, não fosse a altura descomunal que a todos os transeuntes fazia espantar. Como nome, adoptou o da personagem interpretada por Rita Hayworth num filme em que contracenava com Glenn Ford. Pasmem, mas andava sempre acompanhada pelos maiores matulões do Alfeite e dos "Páras". Incrível, nunca percebi como é que eles acreditavam que os demais não viam logo o esquema.
A Adolfa ainda bateu muita calçada de Lisboa e nos tempos Duran-Duran lá dava à anca no Trumps, ao som do That's the Look of Love. Com o tempo da parva gayzização do sistema, começou a época dos body-buildings á americana e assim o look macho-paneleiro tomou conta de tudo: no way para Adolfas anymore.
Um dos últimos episódios de que ouvi falar, foi aquele que lhe aconteceu já há mais de quinze anos. Habitualmente, ela passava as noites na esquina da Imprensa Nacional com a Escola Politécnica, catrapiscando taxistas e incautos distraídos que por lá circulavam de carro "por acaso" e a caminho da fofa e quentinha cama da esposa. Uma pestanada, um olhar fixo para dentro do carro que também por "mero acaso" abrandava e pronto! Lá dava ela a boca ao vício, até ao senhor que se seguia. Pelo que parece, numa trágica noite de tempestade levou um rebenta dos antigos e partiram-lhe um braço e uma perna, cometendo até a impudência de a terem atirado para dentro de um contentor de lixo das obras.
Pensam que a Adolfa ficou em casa a chorar? Qual quê?! Assim que conseguiu dar às canetas, lá estava outra vez de plantão, toda engessada, na esquina de todas as emboscadas. Firme e heróica, que nem uma Cavaca com pedigree!
Muito fica para contar, desde os bolos de haxixe e os ponches de Fringanor e Roiptnoil, até à famosa visita que um grupo de "amigas" fez num fim de semana na casinha da mãe da Adolfa lá para as bandas de Rio Maior. Já não bastava o escândalo público naquele perdido buraco do Portugal profundo, para ainda terem sido corridas lá de casa, após uma noite em que as criaturas resolveram transformar as lindas almofadas da sala da mãe da Adolfa. Forradas com capulanas onde surgia a sorridente carantonha de Samora Machel, decidiram reconvertê-las em algo de mais fashion, cosendo argolas de cortinados nas orelhas e pintando a caneta de feltro longos cílios sobre os olhos. Enfim, o ditador do Maputo surgia como uma espécie de Marilyn tropical.
Outros tempos, outras gentes, outra classe. Antes dos i-pod, i-phones e até dos telemóveis. Maldita tecnologia!


(1) O nome é muito parecido.
(2) O Bric a Bar de outros tempos
(3) O nome é parecido, quase idêntico


1 commentaires:

Laura Bouche disse...

Rodolfa e bem,
a menina de sua mãe :-)

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